Escapar aos Dentes do Crocodilo e Cair na Boca do Leopardo

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Canal de Leitura

por João Cabrita

 

Historiador moçambicano distancia-se da Linha Oficial

 

Título: Escapar aos Dentes do Crocodilo e Cair na Boca do Leopardo

Autor: Yussuf Adam

Editora: Promedia (Maputo, 2006), 478 pp ; 150,000MT

 

A tese de doutoramento do historiador moçambicano Yussuf Adam, defendida na Universidade de Roskilde, Dinamarca, acaba de ser publicada em livro, com o título, Escapar aos Dentes do Crocodilo e Cair na Boca do Leopardo. É um trabalho originalmente publicado em inglês em 1996, e que trata da “evolução do quadro sócio-económico em Moçambique após a independência”. Adam apoia-se em três factores distintos, designadamente as estratégias de desenvolvimento e políticas complementares seguidas pelo governo da Frelimo, a ajuda externa prestada ao país, e a chamada “desestabilização”.

Ressalta, da leitura dos diversos capítulos, que o autor, não obstante o seu passado de militante da Frelimo, se demarcou da linha oficial definida – e defendida – pelo partido no Poder sobre questões anteriores e posteriores à independência, mormente o conceito de zona libertada, a vitória militar que a Frelimo afirma ter sido alcançada sobre as forças coloniais, e os avanços económicos que se teriam registado em 1981. E não é só do Partido Frelimo que o autor se distancia. Ele não apenas questiona como procede à desmontagem de posições assumidas por diversos académicos e estudiosos do caso Moçambique a propósito de temas relacionados com a política interna e externa seguida pelo governo moçambicano, dando aval ao que Michel Cahen considera ser “os grandes danos” que os “simpatizantes europeus da Frelimo” e os “voluntários internacionalistas” causaram à “revolução moçambicana por serem apoiantes incondicionais da Frelimo, não criticando nenhum erro até que a própria Frelimo o criticasse, denunciando vozes críticas como estando ao serviço do imperialismo…”

Tratando das questões económicas, Adam refere que “as estratégias de desenvolvimento não eram sustentáveis social e politicamente porque não tinham em conta a realidade social, económica e política de Moçambique e agiam contra os interesses dos camponeses e operários que a Frelimo considerava serem a base social da Revolução.” O autor refere que os “nacionalistas revolucionários” (designação que ele dá à classe pensante do partido) haviam feito uma “análise defeituosa da realidade” moçambicana. E acrescenta: “As estratégias de desenvolvimento pós-colonial foram geralmente formuladas a partir de uma base ideológica ou política. Escolhiam-se as opções para o desenvolvimento depois da tomada de decisões políticas” e estas “tinham de ser aplicadas pelo próprio partido ou pelo aparelho de estado mesmo quando se julgava serem incorrectas.” A ilustrar esta posição, Adam apresenta casos concretos como os de Changara, Boane, Mueda e Sabié. Interessante foi a observação feita de que no Sabié, a política agrária do governo entrou em rota de colisão com um número significativo de agricultores privados moçambicanos que já vinham desenvolvendo as suas actividades desde o período colonial. E relativamente ao “berço da revolução”, Adam realça a forma como o governo alienou a população maconde, não obstante o apoio decisivo por ela prestado à Frelimo durante a luta pela independência nacional.

Pegando no tema das estratégias de desenvolvimento e políticas do governo, Adam argumenta que ambas “foram a incubadora do protesto e resistência pelo facto de terem bloqueado os projectos políticos pós-independência de outros grupos para além dos nacionalistas revolucionários que detinham o monopólio do poder estatal.” O autor frisa que a “versão oficial” sobre a guerra civil moçambicana “tem todos os ingredientes para ser a imagem perfeita da teoria da conspiração”, pois “segundo o governo, as suas políticas acertadas, justas e correctas foram sendo destruídas pelos «infiltrados», agentes do inimigo.”

Relativamente à génese da Renamo, o autor volta a distanciar-se dos estereótipos propalados tanto pelo governo como por um vasto número de analistas do caso moçambicano, considerando-os “ilustrações redutoras de uma teoria de conspiração resultante de uma leitura não crítica das fontes.”

Yussuf Adam cita Ken Flower, o chefe da CIO rodesiana, como uma das fontes e da sua alegada paternidade dum MNR que, aliás, nunca existiu como entidade distinta da Renamo. Adam recorre ao livro de memórias de Flower, mas deixa escapar um pormenor. É que “a proposta de criação do MNR” publicada por Flower no seu livro de memórias, é um documento infantilmente adulterado pelo director da secreta de Smith/Mugabe mas que tem sido apresentado amiúde como prova cabal da falta de legitimidade da Renamo.

Adam argumenta que a Renamo não soube tirar partido pleno do descontentamento gerado pelas políticas do governo entre o sector rural da população, em face das “acções terroristas” por ela levadas a cabo, como também não terá conseguido criar uma “base social de apoio” entre esse sector. O facto da Renamo ter operado no interior do país durante todo o conflito, excepto nos primeiros dois anos da sua existência, é indicativo de que terá forçosamente existido uma tal base de apoio. E os resultados dos primeiros escrutínios eleitorais realizados após o acordo de cessar-fogo, levam a questionar o timbre de “terrorista” com que se pretende carimbar o movimento de guerrilha.

Tratando da ajuda externa a Moçambique, Adam considera que ela girou em torno do princípio da “desestabilização” e que a Renamo terá sido parte da equação. É um facto que quem ajuda o faz com o objectivo de retirar dividendos, mas o apoio por parte dos países ocidentais a Moçambique não teve como contrapartida a promoção da causa defendida pela Renamo. Antes pelo contrário. Excluindo países como a Itália e os estados nórdicos, tidos e havidos como aliados da Frelimo desde o período da luta pela independência, aparecem a encabeçar a lista os Estados Unidos e a Inglaterra. Estes evidenciaram-se por uma hostilidade aberta contra a Renamo, combatendo-a política, diplomática e, no caso do Reino Unido, militarmente. Os Estados Unidos chegaram a considerar apoiar militarmente o governo da Frelimo na guerra civil moçambicana, só que a iniciativa, ironicamente defendida pelos defensores da chamada Doutrina Reagan, viria a ser vetada pelo Congresso. O apoio titubeante esboçado em capitais como Lisboa, Bona e Paris em relação à Renamo não teve qualquer impacto sobre o desenrolar da guerra civil. A Renamo não contou com o apoio da “extrema-direita”, se é que em relação a esta Adam inclui grupos neonazis e neofascistas, como os Skin Heads e o Ku Klux Klan, entre outros.

A editora, como que a completar a excelente apresentação exterior, poderia ter prestado maior atenção à qualidade dos mapas reproduzidos nas primeiras páginas do livro. E o autor não deveria ter descurado a importância que um índice remissivo tem para uma monografia como Escapar aos Dentes do Crocodilo e Cair na Boca do Leopardo, que indubitavelmente, será matéria de estudo recomendada para os estudantes em geral.

João Cabrita – CANAL DE MOÇAMBIQUE – 18.04.2006

 

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